Lembre-se:
2 pra direita o olho fecha
3 pra esquerda o olho abre
Eu não sei exatamente o que aconteceu. Não lembro de muita coisa de como vim parar aqui. Veio um clarão muito forte que me deixou cega por alguns segundos, depois um som grave e muito alto que deixou meus ouvidos zumbindo. Isso, eu não tenho dúvidas, foi uma explosão. A próxima lembrança que tenho é de mim e Shoftiel (o Jorge) correndo por uma terra desconhecida, sinistra, confusa. Fugindo de criaturas estranhas. Era como estar preso em um terrível pesadelo sem fim.
Em algum momento, Shoftiel encontrou uma porta para a Terra, mas havia uma armada de espectros prontos a nos emboscar. Como querubim de valor que sempre foi, Shoftiel partiu para o ataque, mas, primeiro, me empurrou pela porta e a bateu atrás de mim, sem me dar tempo nem mesmo de me despedir. "Nunca perca a sua fé", suas últimas palavras para mim. Achei que essa seria a maior dor que eu poderia sentir, mas esse era só mais um capítulo na minha história...
Acordei um pouco desnorteada, muito cansada, não demorei a reconhecer a trilha da floresta da Tijuca. Primeira tentativa de sentir os outros, meus irmãos, minha estrela: Poiel, a Ishin de terra, Sorush, o Hashmalin, e Zazrael, o Ophaim. Nenhum sinal. Absolutamente nada.
Respirei fundo, tentando controlar a ansiedade. Haveria de ser a distância, a proteção da ilha de Apolo, o último lugar onde estivemos juntos. Eu só precisava chegar lá, bastava atravessar o tecido e voar...
Esse foi o segundo impacto. Por mais que me esforçasse, mesmo que usasse todas as minhas forças, o mundo espiritual não se revelava mais. A dor veio de novo, ainda mais forte. E eu chorei de desespero até não haver mais lágrimas ou energia em mim. A minha existência não fazia qualquer sentido e eu implorei aos céus, no alto da Pedra da Gávea, durante uma tempestade intensa, que um raio me fulminasse e minha alma celeste pudesse recomeçar em seu lugar de origem, junto de quem havia se tornado a minha família ao longo do último ano.
Óbvio, meu pedido não foi atendido.
Após enlouquecer um pouco mais naquela floresta, eu desci a trilha para encontrar um mundo muito mais decadente do que eu havia deixado para trás. Uma sombra de pesar parecia cobrir tudo e cada canto. Cada passo na cidade aumentava minha sensação de ser drenada, o peso nos meus ombros crescia.
Vaguei um tempo sentindo os olhares e ouvindo os lamentos de quem passava por mim: "coitada, tão bonita e viciada..."; "cuidado! Essa mulher é de rua, pode te roubar!"; "tão jovem e tão perdida na vida!"; "uma mulher bonita assim, poderia ser uma modelo... deve estar chapada!"
Meu reflexo em uma vitrine de loja me mostrava o motivo. A calça jeans surrada e a camiseta de malha sujas de terra, os cabelos emaranhados ainda com folhas, o rosto desfigurado pela desidratação e o desespero. Não me importei. Nada importava.
Foi uma longa e cansativa caminhada, subindo o Alto da Boa Vista em direção à Barra da Tijuca. Eu precisava ver o mar... Ao longo do caminho, passei na porta de um Templo antigo do Ten Tao. Um dos monges estava varrendo a calçada e me parou. Seu olhar era caridoso e doce. Ele me deu água, comida e um conforto: "todos temos uma missão, filha. A minha, por exemplo, é a caridade e a manutenção desse Templo. Nada acontece por acaso. Confia. Você vai reencontrar o seu caminho, a sua missão. Nunca perca a sua fé".
Nunca. Perca. A. Sua. Fé.