quinta-feira, 13 de abril de 2017

Memórias de I: Matemática - Parte 2

     Comecei a imaginar as rotas de fuga. Passar mal nem pensar. Teria que ficar em casa com a velha Docinho. A mãe dava aula num colégio municipal. Só se eu não fosse para casa. Mas, para onde eu iria? Passei tanto tempo pensando em como iria me livrar da matemática que, quando dei por mim, já estava arrumada e sentada dentro do carro do pai, enquanto a mãe enchia os ouvidos dos meus irmãos com recomendações. Era tarde. A escola me esperava.
     Foi a pior volta de carro da minha vida. Tentei acreditar que a professora tinha sofrido um acidente. Nada muito sério. Ela teria escorregado no banheiro, batido com a cabeça na privada, caindo de boca em um...sabonete. Quebraria no máximo duas unhas, dez dedos das mãos, e o nariz...Coisa pouca. O suficiente para ela não poder dar aulas por três anos, porque em três anos eu me formaria: "Se Deus quiser! Se não, eu devo Ter cometido um pecado muito grande!"
     Dentro do carro o pai ia cantarolando uma música de um tal “Trio Parada Dura”. Henrique, o mais velho, sentado no banco do carona, ouvia num walkman ligado no último volume um barulho chamado “Ramones”. O terceiro, Joaquim, ia atrás comigo. Passava a viagem roendo um biscoito recheado de chocolate. Roendo não, ruminando. Porque o biscoito durava tanto, dava a impressão que meu irmão o mastigava, engolia e depois regurgitava para roer de novo.
     Era assim sempre. A mamãe deixava o caçula, Luís, na creche. O pai nos levava. E lá ia eu, tentando me organizar (sempre fui uma pessoa enrolada). Na verdade aquela quarta-feira foi uma grande exceção. Eu não dava a mínima importância para a bagunça que minha mochila estava, nem para o fato de estar com as meias do avesso.
     Tudo o que eu queria era um milagre: o fim da matemática.Dentro da minha cabecinha (juro que era uma cabecinha pequena e bonitinha, apesar de me chamarem de cabeça de paraíba) conseguia enxergar o senhor Presidente...o Papa...o próprio Jesus Cristo, aquela figura que me intrigava, preso à cruz e pendurado na parede da igreja (isso é outra história), movendo os lábios dizendo, em voz solene, arredia e grave (papai dizia que a voz de Deus era como um trovão, e já que na catequese Dona Dulce explicava que Jesus era Deus Menino...): “É um grande pecado praticar, ensinar, pensar matemática. Está proibido, até mesmo, pronunciar este nome. Aquele que o fizer será julgado por Mim, sob pena do Inferno.”
     Ah...Como seria bom! Tinha a certeza que todos iriam concordar por dois motivos: todo mundo teme a Deus, e ninguém quer passar as férias eternas no inferno.

*Continua*

(Texto de 1999, protegido por Creative Commons)

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