sexta-feira, 27 de março de 2020

Universo Alternativo: O Diário de Arabel - Parte 1

Lembre-se:
2 pra direita o olho fecha
3 pra esquerda o olho abre

Eu não sei exatamente o que aconteceu. Não lembro de muita coisa de como vim parar aqui. Veio um clarão muito forte que me deixou cega por alguns segundos, depois um som grave e muito alto que deixou meus ouvidos zumbindo. Isso, eu não tenho dúvidas, foi uma explosão. A próxima lembrança que tenho é de mim e Shoftiel (o Jorge) correndo por uma terra desconhecida, sinistra, confusa. Fugindo de criaturas estranhas. Era como estar preso em um terrível pesadelo sem fim.

Em algum momento, Shoftiel encontrou uma porta para a Terra, mas havia uma armada de espectros prontos a nos emboscar. Como querubim de valor que sempre foi, Shoftiel partiu para o ataque, mas, primeiro, me empurrou pela porta e a bateu atrás de mim, sem me dar tempo nem mesmo de me despedir. "Nunca perca a sua fé", suas últimas palavras para mim. Achei que essa seria a maior dor que eu poderia sentir, mas esse era só mais um capítulo na minha história...

Acordei um pouco desnorteada, muito cansada, não demorei a reconhecer a trilha da floresta da Tijuca. Primeira tentativa de sentir os outros, meus irmãos, minha estrela: Poiel, a Ishin de terra, Sorush, o Hashmalin, e Zazrael, o Ophaim. Nenhum sinal. Absolutamente nada.

Respirei fundo, tentando controlar a ansiedade. Haveria de ser a distância, a proteção da ilha de Apolo, o último lugar onde estivemos juntos. Eu só precisava chegar lá, bastava atravessar o tecido e voar...

Esse foi o segundo impacto. Por mais que me esforçasse, mesmo que usasse todas as minhas forças, o mundo espiritual não se revelava mais. A dor veio de novo, ainda mais forte. E eu chorei de desespero até não haver mais lágrimas ou energia em mim. A minha existência não fazia qualquer sentido e eu implorei aos céus, no alto da Pedra da Gávea, durante uma tempestade intensa, que um raio me fulminasse e minha alma celeste pudesse recomeçar em seu lugar de origem, junto de quem havia se tornado a minha família ao longo do último ano.
Óbvio, meu pedido não foi atendido.

Após enlouquecer um pouco mais naquela floresta, eu desci a trilha para encontrar um mundo muito mais decadente do que eu havia deixado para trás. Uma sombra de pesar parecia cobrir tudo e cada canto. Cada passo na cidade aumentava minha sensação de ser drenada, o peso nos meus ombros crescia.

Vaguei um tempo sentindo os olhares e ouvindo os lamentos de quem passava por mim: "coitada, tão bonita e viciada..."; "cuidado! Essa mulher é de rua, pode te roubar!"; "tão jovem e tão perdida na vida!"; "uma mulher bonita assim, poderia ser uma modelo... deve estar chapada!"

Meu reflexo em uma vitrine de loja me mostrava o motivo. A calça jeans surrada e a camiseta de malha sujas de terra, os cabelos emaranhados ainda com folhas, o rosto desfigurado pela desidratação e o desespero. Não me importei. Nada importava.

Foi uma longa e cansativa caminhada, subindo o Alto da Boa Vista em direção à Barra da Tijuca. Eu precisava ver o mar... Ao longo do caminho, passei na porta de um Templo antigo do Ten Tao. Um dos monges estava varrendo a calçada e me parou. Seu olhar era caridoso e doce. Ele me deu água, comida e um conforto: "todos temos uma missão, filha. A minha, por exemplo, é a caridade e a manutenção desse Templo. Nada acontece por acaso. Confia. Você vai reencontrar o seu caminho, a sua missão. Nunca perca a sua fé".

Nunca. Perca. A. Sua. Fé.

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Um lugar para respirar

Eu sinto como se as versões mais extremas e severas das 4 estações do ano estivessem acontecendo ao mesmo tempo dentro de mim... E existe um anseio desesperado por colo, por acolhimento. Uma necessidade de ter refúgio onde a dor possa vazar pelos olhos e poros. Onde eu possa deixar a represa trincar. Um lugar seguro para a tristeza me transbordar até se esgotar. Sem cobranças, sem perguntas, sem juízos. Apenas um abrigo, um abraço confortável e longo. Um instante no espaço-tempo para eu me desmontar, lenta e completa e intensamente, em paz. Até que as emoções sedimentem. Até que a mente clareie. Até eu controlar meus demônios. E respirar.

quinta-feira, 14 de março de 2019

Calo, cálido, calado

Não é que a dor emocional acaba. Nem que o medo irracional passa. Também não é que a insegurança desapareça.

É que a gente cala.

Falar torna tudo real. Palpável. Vergonhoso. Triste.

Falar torna a gente vulnerável.

Às vezes é menos doloroso implodir de angústia sozinho do que dividir nossa tempestade interna e não receber acolhimento.

Então a gente cala.

Para o mundo está tudo resolvido, que ótimo. Não importa como. Não importa o preço.

E a gente segue em frente.
Emudecido.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Sobre Escrever, mais uma vez

Às vezes é incrivelmente fácil.

As letras parecem combinar entre si e as palavras brotam na folha em branco, se amontoando em frases, num processo praticamente automático, dando forma às ideias e emoções vivas dentro da minha mente. O texto nasce sozinho. Quando dou por mim, já está na tela, contando a qualquer leitor disposto um pouco do universo caótico guardado dentro de mim.

Noutros momentos escrever é um extenso trabalho de parto.

As emoções colidem entre si, a ansiedade explode, os neurônios se agitam, aflitos com a história que fermenta e cresce presa dentro da mente. A dor de cabeça vem, intensa, como se os personagens socassem, chutassem, forçassem a caixa craniana, desesperados por liberdade, sufocados. Mas as letras não obedecem, não se juntam. Seguem como códigos indecifráveis, fora da ordem alfabética, desprovidas de liga e de sentido. Os ponteiros do relógio seguem seu bailado ritmado e o coração dispara.

Muita pressão.
Muito sentimento.
Muito tudo.

Escrever é desnudar a alma. Sempre.

SEMPRE.

Mais do que palavras, uma parte da alma do escritor segue em cada texto. Cada personagem é uma faceta diferente do que se é ou do que se gostaria de ser.

O momento de transportar uma história de dentro de si pro mundo pode ser apavorante.
Bem, pelo menos pra mim.

domingo, 3 de setembro de 2017

A Foice

A ceifa é necessária. Sempre. Um plantio abandonado vira mata, terreno baldio, coisa selvagem. Não sei se isso é ruim, mas sei que será preciso plantar de novo, em algum momento. E desbravar terra selvagem não é tarefa fácil nem divertida.

É preciso amanhecer com o Sol, tomar pra si a foice e ceifar os campos de sua alma. Semeastes vento? O que te esperas é farta colheita de tempestade, mais cedo ou mais tarde.

Podes até procrastinar o trabalho árduo na fazenda da tua mente, no entanto volto a dizer que é inevitável. Para novos amores e amizades, é preciso limpar o terreno dos antigos.

Ceifando o trigo dourado e seco, separa-se os grãos para consumo, devolve-se à terra o resto da planta, que servirá de adubo para a próxima plantação - provavelmente de alguma espécie capaz de consumir nutrientes diferentes e dar ao solo certo descanso.

Ceifar a alma é abrir espaço. Aquilo que te faz bem, impulsiona, ajuda a evoluir e você escolhe manter: isso ficará por perto. O que te atrapalha, por maior que seja o apego, melhor abrir mão.

A ceifa é o tempo da despedida. Não é sinônimo de falta de afeto. Significa o fim de um ciclo. A vida segue, independente do nosso querimento. É preciso ter maturidade para reconhecer o momento e encarar o desafio dolorido.

De foice em punho, caminhe até os pomares e hortas de seu espírito e trabalhe. Medite sobre a sua colheita, a qualidade dos frutos, o que tem plantado. Quando todo o dourado do trigo jazir no chão, será preciso abrir pequenos ventres na terra e acomodar novas sementes. Pense bem no que vai depositar nos sulcos do teu coração. Lembre-se que a ceifa virá novamente e terás que recolher os frutos mais uma vez. Repito: é inevitável.

(03/09/2013)

quinta-feira, 18 de maio de 2017

Memórias de I: Matemática - Final


     Veja a cena: eu vestida com meu belo uniforme, pulando um muro, e caindo certinho do outro lado. Bonitinha. Tinha sido um salto perfeito. Imaginou? Agora esquece tudo isso. Eu até cheguei firme do outro lado, caí agachada, dobrando os joelhos para amenizar o impacto. Três coisas deram erradas: 
  1. O barulho do meu suposto salto; 
  2. O barulho do relógio, programado para alarmar sempre que o inspetor tivesse chegando; 
  3. E a mais importante: os barulhos não seriam nada se eu conseguisse sair dali com a mochila rapidamente. O inspetor, intrigado, iria subir no muro e não veria nada. Acontece que, quando quis levantar, senti meu lindo tornozelo me dizer... 
- Ela quebrou o pé. Vou ter que engessar. 
- Obrigada, Dr. Fábio. Sorte sua eu estar de carro para te socorrer! Sorte também a escola ser próxima a um hospital público e o inspetor ter te ouvido cair! - falou a diretora, com seu olhar seboso. Ela já havia formulado um belo relatório. Resumo das transgressões de normas do colégio que eu havia cometido. Mamãe logo estaria chegando. E quanto mais a diretora falava a palavra sorte, mais eu desejava ter sido azarada... 
     Não demorou meia hora para mamãe estar na recepção do hospital ouvindo as barbaridades que eu havia cometido. Papai estava sério, analisando as minhas radiografias e conversando com o médico na sala de emergência. Tive medo do castigo. Mas houve um acordo. Era final de semestre e eu sempre fora uma boa aluna. Então cumpriria detenção no colégio após as aulas e o resto da punição seria responsabilidade dos meus pais, em casa. 
     Já no carro, abrigada no banco de trás, fiquei ouvindo os sermões da mãe, de que ela não havia tido oportunidade de estudar e eu não sabia aproveitar a minha. Papai olhava para mim com cumplicidade, olhar risonho. Não dizia uma palavra. 
     Mais tarde, de noite, uma amiga, seu nome é Dalila, esteve em minha casa. Foi ver o estrago que eu havia feito em minha perna e me passar a matéria do dia. Entrou no quarto excitada com minha aventura. Naquela altura do campeonato, todos já sabiam: 
- Caramba!! Posso escrever no seu gesso?
- Desde que não seja em rosa...- Não entendo essa sua implicância com o rosa, I. Deixa pra lá!! Me conta mais, vai...
- ...Onde eu estava? No castigo. Bom, vou ficar presa nesta casa por um mês com a vó Docinho. Nada de sair nos fins de semana. 
- Hahaha! Sozinha com sua avó? Você vai enlouquecer. Ou vai aprender a arrumar casa, lavar e passar roupa, e cozinhar de perna pro alto! Hahahaha! Posso ver a cena!!! 
- Ri! Ri mesmo da desgraça dos outros! Agora vê! Eu tô aqui aturando a velha esclerosada e uma amiga da onça enquanto meus irmãos e meus pais estão comendo minha banana split e meu cheddar!
- Por que você quis fugir? Ia encontrar algum carinha? Algum namorado? Se você estiver namorando e não tiver me contado! I... 
- Larga de ser besta! Eu fugi daquele treco que se diz professora de matemática!
- Hahahahahaha!
- Lila, a piada não foi tão engraçada assim não. Pra que tanta gargalhada? 
- Não tô rindo da piada. Tô rindo de você! A professora de matemática pediu demissão... - ela começou a falar com cautela quando percebeu que eu estava ficando pálida - Alegou motivo de doença. Tinha um atestado dizendo que ela estava com estafa mental, e que precisava de um spa para o cérebro. Estava ficando mais maluca por causa da matemática. E com depressão, fazendo um caro tratamento psicoterápico. Foi isso que a diretora contou... - ela olhou para mim, assustada com meu olhar vidrado e a espuma que saia da minha boca - A nova professora se chama Teresa Cristina e é uma deusa! Fantástica, você teria se apaixonado por ela! Haha! Vê se pode... - falou, enquanto caminhava até a porta do quarto, procurando por minha avó - ... ela já era maluca, imagina agora que está com estafa numérica. Será que foi por álgebra ou por geometria? 
     Quando Lila terminou de falar, eu soltei um grito histérico e agudo. Ela estava estática. Deu meio passo para trás, batendo com as costas na parede. Até a surda da avó Docinho escutou meus gritos, e achou que fosse por dor na perna. Veio com tanto remédio até meu quarto que até hoje eu não sei qual me sedou. Quando acordei Dalila, ou Lila, tinha ido embora, após ter passado toda matéria a limpo para mim. Aproveitou que eu havia dormido para escrever com uma caneta pink no meu gesso, um ridículo rosa choque. 
     O papai estava sentado ao meu lado na cama. Perguntava se eu estava bem. Fiz que sim com a cabeça. O pai me explicou que, se eu quisesse, poderia procurar uma psicóloga e fazer aulas de reforço em matemática. Eu consenti. Latejando na minha mente, estava o sorriso sarcástico da discretinha, que, apesar de estar doida varrida (e espero que tenha morrido disso), havia saído vitoriosa de nosso último embate (morrido não. Tomara que esteja viva com os números psicopatas a perseguindo, de preferência por toda eternidade).
     Nessa história tem uma coisa que não consigo entender até hoje: como é que alguém consegue idolatrar Pitágoras? Ou qualquer outro doido que tenha se dedicado a matemática...


*Fim*

(Texto de 1999, protegido por Creative Commons.)


Post Script: A autora deixa claro que, apesar das dificuldades em se relacionar com a matéria, nada tem contra a matemática em si. Nem contra profissionais da área.

quinta-feira, 11 de maio de 2017

Memórias de I: Matemática - Parte 6

     Quando saí do banheiro a minha turma já estava quieta. Tomei o cuidado de passar bem longe da sala. Segui, devagar, até o vestiário feminino. Ao entrar reparei nas bolsas jogadas sobre os bancos no centro do vestiário. Não havia ninguém na quadra, daria para ouvir qualquer ruído vindo de lá, até a respiração de uma formiga. Também não havia ninguém no gramado, caso contrário a janela não estaria aberta. "Deve ser natação...sorte que a piscina fica do outro lado!" 
     Pulei a janela com cuidado. Faltava pouco. Percorri o estacionamento, agachada, me escondendo atrás dos carros. Não foi difícil chegar até o murinho atrás do prédio do primário. Complicado foi cronometrar o tempo que o inspetor levava para passar em frente ao murinho, dar a volta no prédio e passar pelo murinho de novo. Desde a fuga do tal Zeca, o muro estava sendo vigiado. Eu tinha que dividir o tempo de uma maneira que ele estivesse longe o suficiente para não me ouvir pular o muro. Mas não tão longe a ponto de já estar próximo ao muro de novo. E tinha que sobrar tempo hábil para eu pular ou desistir de pular o muro, caso houvesse algum problema. 
     Examinei o bendito muro chapiscado com muita atenção. Parecia um especialista em artes examinando um suposto quadro de Van Gogh. Feliz, sonhando com uma imensa banana split (pena que não façam mais...), batatas francesas (batatas fritas, seu mal-informado!), e um delicioso hambúrguer com queijo cheddar (advinha de onde!), joguei a mochila para o outro lado e fiquei escutando ela caiiiiiiirrrrr... 
- Pi-pi-pi-pi-pi... 
     "Mas que raio de Pipi é esse? Barulho cha..." Não completei a frase porque já estava me enfiando atrás de um carro. O barulho era o alarme do relógio, avisando que o inspetor estava voltando. Observação: o estacionamento tinha uma parte de frente para a parte de trás do prédio do primário, ou seja, do murinho. Entendeu? Seja criativo. 
     Tudo já estava calmo, e era a minha vez de pular para a liberdade. Livre da discretinha e seus conceitos de matemática! Atravessei o pequeno beco que ligava o estacionamento ao murinho, apoiei o pé sobre um fino rodapé de ardósia, apoiei com as mãos, as mesmas com que dei impulso, e vualá (não sei francês, mas sei que você entendeu) um terreno vazio a minha disposição. 
     Sentada sobre o muro me dei conta de um detalhe. A parte de fora era mais alta que a de dentro, ou seria mais baixa? Bom, o que importa é que o chão estava mais longe. Senti um frio na barriga. Medi a mim mesma. Senti o frio de novo, o relógio começou a apitar... "É agora ou nunca. Liberdade ou..." Eu me joguei.

*Continua*

(Texto de 1999, protegido por Creative Commons.)

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Memórias de I: Matemática - Parte 5


    "Nossa, como fede!! Sempre tive a curiosidade de entrar no banheiro masculino, só que não nessas condições!" 
     Pus a mochila sobre a pia e guardei o bloco lá dentro. Fiquei observando os espelhos, os mictórios (não sabe o que é? O local onde homens deveriam fazer xixi. Sim, porque a maioria urina no banheiro todo, menos no mictório), as divisórias de ardósia que separavam os vasos sanitários. E estava examinando a porta de uma dessas cabinas quando ouvi risadas e passos próximos ao banheiro. Só deu tempo de pegar a mochila, entrar dentro de uma cabina e fechar a porta.
     Os garotos entraram, uns três, planejando alguma grande sandice. Falavam rápido, discutindo sobre pavios e malvinas, talvez uma bomba...não sei!!! Fiquei rezando para que não me descobrissem. Foi quando um deles começou a contar uma história: 
- Tu viu, cara? 
- Vi o que, Bart? - Bart era o apelido de um deles. 
- O Zeca pulando o muro! 
- Como é que é? - falou um outro. 
- Verdade! Você não me contou essa história! 
- Esqueci! É que o cara tá suspenso desde semana passada! 
- Também, o infeliz já num tá reprovado?
- Tirou nota baixa em tudo! - o Bart de novo - Mas deixa eu contar... Ele e um professor discutiram em sala, nem lembro porque cargas d'água! Sei que o professor o mandou para a diretoria. Só que o cara nunca apareceu por lá! Zeca atravessou o corredor lá de trás e foi até a entrada do vestiário feminino. Num sei se tu já percebeu que lá tem uma janela que dá para o gramado... 
- Sei sim! Quando tem futebol eles trancam a janela, para gente não ver a mulherada! 
- Pois é! Se você pular aquela janela, você não passa na frente da diretoria, e corta caminho! É mais rápido que passar pela quadra. O Zeca pulou aquela janela, atravessou o gramado, deu a volta no estacionamento e pulou aquele muro atrás do prédio do primário. Aquele que é mais baixo.
- Tá de brincadeira?
- Tô nada! Foi a maior zoeira! Quando o professor perguntou a diretora se o Zeca estava na suspensão deu maior confusão. Ela mandou chamar os pais dele e passou maior sabão! Tu acha que o cara não voltou ainda por quê? Suspensão por quinze dias, isso porque a mãe dele apelou muito. Quem me contou foi o próprio Zeca. Ele mata o tempo lá na pista de skate!
- A hora que descobrirem como ele fez isso... Fuga do colégio vai virar epidemia! Putz, Bart, vamô chama esse cara pra ajudar a gente! Ele já está encrencado mesmo!
     Fiquei esperando a resposta do Bart. Contudo o silêncio durou mais de cinco minutos. Abri a porta e já não havia ninguém no banheiro. Pus a mochila sobre a pia e me encarei. Tinha um sorriso de satisfação nos lábios. Já sabia como sair do colégio e estava me sentindo o Rambo. Estaria a sorte sorrindo para mim? 

*Continua*

(Texto de 1999, protegido por Creative Commons.)

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Memórias de I: Matemática - Parte 4

     A minha mente trabalhou rápido. E tão rápido quanto imaginava os castigos e advertências, formulava uma desculpa:
- Olá, senhora Maria! Como vai? - disse enquanto comparava o nariz dela com o nariz de um porco, e percebia que a estampa de seu vestido parecia com um lençol que tínhamos em casa, herança da bisavó Mercedes, que até avó Docinho achava horroroso, e o havia transformado em comida de traça, nem doar para os pobres a avó quis, disse: "Eu não gostaria de ganhar uma foto do demo, pra que vou dar o lençol dele pra alguém?". Acho que é por isso que nunca apresentei a diretora para avó. Se ela já não queria a foto, que dirá ver o demo em pessoa...cruz em credo!!
     A bruaca me respondeu com um sorriso parecido com o da Vandinha Adams no filme em que o tio Chico casa com uma loira oxigenada que tenta matá-lo (salvo engano, é "Família Adams 2"). Foi logo me perguntando porque eu estava saindo da escola faltando tão pouco para o sinal tocar. Pensei em dizer que nem havia entrado ainda. Porém seria pior. Então argumentei que precisava de folhas para o fichário. E não adiantou nada. Ela respondeu que havia folhas no bazar do colégio, e foi comigo até lá. Comecei a entender que assistiria aula, querendo ou não...
     Chegamos a um bazar lotado de alunos. E que não tinha nem meia folha de fichário para vender. Será que a sorte estaria se lembrando de mim? Iria ver a cor do céu e ouvir o barulho dos carros que passavam na rua. Distanciei-me, sem conseguir conter o sorriso, e novamente ouvi aquela voz de Graúna:
- Não há problema, existem alguns blocos na diretoria. Venha.
     Argh!!! Como queria esganá-la! Tinha que pensar rápido...A diretoria era composta por uma recepção, uma sala de espera e a sala da juíza carrasca. Na porta, uma placa escrito "DIRETORA", mas bem poderia ser Srª. Sexta-Feira 13 ou Freddy Grugger Filha (é assim que se escreve?!). Ela quis que eu entrasse em sua sala, quase soltei uma gargalhada. Qual o ratinho maluco o suficiente para entrar na casa da cobra com ela em casa?
     Fiquei aguardando na recepção, enquanto ela foi buscar o bloco. E pude ouvir, nitidamente, o ensurdecedor sinal do colégio. Lá estava eu, andando pelos corredores vazios, escutando a algazarra das diversas turmas abrigadas nas tantas salas de aula, fazendo festa para os professores. É claro! A minha turma era a única que tinha aula de matemática na Quarta-feira.
     Comprimi o bloco contra o corpo. Estava a dez passos da porta de minha sala. Pelo barulho a professora não estava em sala. O que era um alívio para os meus colegas, para mim era um risco. E se esbarrasse com a discretinha no corredor? Senti um calafrio percorrer minha espinha, um arrepio da cabeça aos pés. Olhei ao meu redor em busca de um abrigo. E lá estava o banheiro...
    Corri em direção ao banheiro feminino, pus a mão direita na maçaneta da porta. Um alerta, estilo neon Las Vegas, começou a piscar dentro da minha cabeça: "E se a professora estiver no banheiro? Não seja paranoica, existe banheiro na sala dos professores! Mas e se ela estivesse vindo para a sala quando sentiu uma dor de barriga? Melhor não arriscar." Virei em direção ao corredor, não poderia seguir por ele: "O que faço? O que?"
     Olhei para o lado e lá estava a porta do banheiro masculino. Não pensei, entrei.

*Continua*

(Texto de 1999, protegido por Creative Commons)

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Memórias de I: Matemática - Parte 3

     Apesar de minha imaginação fértil e de minha fé, logo percebi que nada iria me salvar da professora discretinha. Não aconteceria um milagre. A tia Senira tinha feito novena para casar quando tinha dez anos de idade. E Santo Antônio só realizou o milagre trinta anos depois. Então não seria em duas horas de chororô que eu conseguiria o meu. Se bem que a avó Docinho pediu para a morte levar o marido da tia Senira embora uma vez só, e não demorou nem uma semana para o tio Ubaldo ser enterrado (coitada de tia Senira, que não ficou nem um ano casada...). O acidente que eu havia idealizado, ou qualquer um do tipo, também não aconteceria. Por quê? Eu não tinha tanta sorte assim. Então estava decidido: eu iria fugir.
     O pai se distanciava com o carro. Ainda deixaria Henrique na faculdade. Nós, Joaquim e eu, estudávamos no mesmo colégio, em prédios diferentes. E ele já havia corrido em direção ao dele, enquanto eu acenava calmamente, dando tchau. Quando não conseguia mais ver o carro do pai, encarei o prédio de cinco andares e abri um sorriso debochado: "Não sei para onde vou. Mas, matemática eu não vou estudar".
     É engraçado. Quando somos novinhos tudo é meio cinematográfico, dotado de uma mágica e um mistério denso. Como se fosse uma continuação de uma dessas séries americanas. E, naquele momento, enquanto encarava o prédio e me preparava para fugir, me senti meio princesa Léa de "Guerra nas Estrelas" (será que alguém se lembra desse filme?). A fuga parecia uma cena dessas em que a mocinha se prepara para dar o troco ao bandido no melhor estilo "She-ra" (disto alguém deve lembrar.). O intrigante é que, por muitos momentos, não assistir aula de matemática pareceu impossível. E, agora, estava assim: tão próximo e tão fácil...

     Porém, já que alegria de pobre dura pouco, quando me virei e comecei a caminhar na direção do ponto de ônibus, escutei uma voz seca chamar meu nome: a diretora.

*Continua*

(Texto de 1999, protegido por Creative Commons.)