quarta-feira, 6 de julho de 2016

Rosa dos Ventos

Harbor Azul, 20 de Junho de 2002.

      Textura. Não é inusitado como, num espaço de cerca de dez passos, o solo pode ter vários toques diferentes? É algo inexplicavelmente mais perceptível em Harbor. Não precisa muito esforço! Basta chegar na praça central, tirar os sapatos, fechar os olhos e andar em qualquer direção. Poderá sentir viscosidade, suavidade, aspereza, umidade e maciez. É como redescobrir o tato.
      Se for inverno, não haverá empecilhos para a caminhada às cegas. A baixa temporada tem suas vantagens – poucas pessoas, mais tranquilidade, mais silêncio, temperaturas calorosas na medida. As cores permanecem vibrantes, tanto quanto os olhares das mulheres cruzando as vielas. Suas risadas reverberam por salas, cozinhas, varandas, contaminando tudo com uma alegria de viver cuja realidade não justifica.
      Por falar em cozinhas, os sabores dessa terra são indescritíveis. É claro que a maior parte dos ingredientes chega junto com os barcos, na primeira hora da manhã. A maresia toma para si os narizes a ponto de nausear estômagos fracos. O frescor dos alimentos dá outro sabor a pratos tão conhecidos e novas combinações, como o abacaxi com queijos e camarão, arrebatam todos os paladares. Aqui é comum ter frutas em todas as refeições do dia. Não reclamo, só tenho a agradecer à vida.
      A maior parte dos homens vive do mar e de seus frutos. Mas há carpinteiros, artesãos, comerciantes, cabeleireiros, mergulhadores. Estes últimos são como tritãos, tem fala ritmada feito música e exalam um feromônio-bambeador-de-pernas-de-mocinhas. Arrancam suspiros das nativas e, muitas vezes, gemidos das turistas. Sim, você entendeu! Não, não me afetam. Talvez porque o fundo do oceano já era minha segunda casa antes de chegar. Ter seu próprio brevê é como ter guelras e um aviso de afaste-se.
      Falando no oceano, a profusão de cores e vida é ainda mais apaixonante a partir de dez metros de profundidade. Os recifes abrigam berçários os quais, enquanto estou na região, brigo para proteger. A variedade de espécimes poderia me ancorar no futuro. Quem sabe?
      No final do dia, quando o Sol pinta absolutamente tudo com tons do amarelo ao vermelho por horas, atravesso calçadas, meneando a cabeça para os cumprimentos efusivos dos moradores, rumando firme para a praia. Sentada na areia, escuto o soar dos sinos de uma igrejinha distante. Vejo os jangadeiros retornarem em seu ritmo suave, ao balanço das ondas brilhantes acobreadas. Um aroma misto de flores, peixes na brasa e água de coco não me permite esquecer de onde estou. Mas o pôr-do-Sol sempre traz o passado à tona. É impossível não pensar em você...
      Quando a Lua chega, prateando o horizonte, mergulho mais uma vez nesse mar enorme, quente e transparente, lavando a alma dessa nostalgia ressurgente – e desejo que seja o último do dia, rezo para a insônia não me guiar de volta.
      Saio da praia quando os jovens chegam, barulhentos, perfumados, montando mesas de areia para um luau que só termina quando a Lua se despede. Um prazer que já não me apetece.
      Escrevo-te de um mini bangalô aconchegante, com cama no chão, porém macia, chuveiro quente e vista para as estrelas de todos os lados. Estou em Harbor Azul há semanas, significando que, quando receber esta carta, já estarei novamente na estrada. Segue no envelope o endereço do paraíso e registro aqui minha provocação para conhece-lo. Viverias bem nesse lugar, certeza. Ao menos enquanto essa calmaria durar – sabemos que esses oásis da nossa terra não permanecem anônimos por muito tempo.
      Quando chegar ao novo destino, seja qual for, entro em contato novamente. Preciso confessar que meu ano sabático tem gosto agridoce. Meu espírito cigano tem se divertido e apaziguado. Mas eu sinto sua falta, exatamente como lhe disse que sentiria.
      Por favor, cuide-se.

Com carinho,
Sua Sereia.

P.s.: Gravei na pele, como sugeriu tempos atrás, uma rosa dos ventos. Ao invés do Norte escrevi “prometo”, a última palavra que dissemos um ao outro. Está no tornozelo direito. Achei que deveria saber.

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