domingo, 3 de julho de 2016

Ainda Seu Jair...

- É Cecília Meirelles, doutor! Tem tanto poema bonito, tanta cor, tanta música! Por que desperdiçar o espaço das paredes com puro branco se podemos encher de vida?
                Essa foi a primeira vez que encontrei o senhor Jair, 70 anos de idade, mulato de estatura mediana, cabelo bem grisalho e grossas lentes sobre os olhos. Fui levado a sua casa pelo seu neto, Samuel, muito preocupado com o comportamento incomum do avô:
- Sempre foi tão metódico com tudo, doutor! Ele era do exército, sabe? Criou a gente com muita disciplina, muitas regras. E de repente tá tudo ao contrário!
                Apesar dos exames limpos, o rapaz permanecia atormentado com a ideia do avô ter sofrido algum tipo de AVC ou estar sofrendo alguma demência senil. Porém pensava bem mais rápido que falava e estava muito difícil acompanhar seu relato. Logo decidi:
- Tudo bem, garoto. Vamos marcar uma visita, quero conhecer seu avô.
                Eu não estava bem preparado para nosso primeiro encontro. Esperava mais um quadro corriqueiro de Alzheimer, não aquele cenário. Não uma síndrome tão rara.
- Como sabe que sou médico, seu Jair?
- hahahaha Ser velho tem suas vantagens! – soltou, animado, antes de me estender a mão suja de tinta – O senhor saber meu nome, qual é o seu?
- Ary. Prazer em conhece-lo.
- Na verdade será um desperdício de tempo, seu Ary. – virou-se novamente para a parede – O senhor se importa se eu continuar pintando enquanto falamos?
- Claro que não.
                Eu olhava em volta encantado. Todas as paredes da sala estavam cobertas de cores, como se alguém tivesse estourado balões cheios de tintas. Versos de músicas, de poemas, pedaços de histórias cobriam outros espaços. Os livros estavam completamente fora de posição. Alguns passos adiante e podia ver o corredor ocupado por peças de quebra-cabeças:
- Ah, o senhor desculpe! Estava brincando hoje de manhã, se tirasse as peças daí me perderia. – falou enquanto subia uma escada – Deu bastante trabalho juntar tudo isso assim.
- Quantos quebra-cabeças têm aqui, seu Jair? Quatro?
- Três! São de quando o Samuca era criança... – e se perdeu na memória.
- Boas lembranças?
- As melhores! E as piores também.  – encarei-o, curioso – 'Cê sabe, seu Ary, eu segui carreira militar a vida inteira... E achava que crianças eram como recrutas, precisavam apenas de disciplina e firmeza. – continuou, com pesar – Samuca sempre foi uma criança ativa, montava os quebra-cabeças num estalo, logo enjoava deles. Então, quando não tinha mais o que fazer, ele misturava as peças e tentava transformar num desenho só.
- É isso que está fazendo?
- Sim! E como é divertido, doutor! Irritante também, quando nada encaixa. Mas, aí, eu largo tudo e vou colorir outra parede, fazer colagens... Viu minhas colagens?
                Empolgado, me levou à cozinha. A geladeira estava coberta de fotos de lugares do mundo inteiro, um mosaico perfeito:
- São lugares que conheceu?
- Não. São a minha velha... – e me puxou para trás. Quanto mais me afastava, mais nítido ficava o rosto de uma mulher. Olhei para ele, maravilhado, mas Jair já recitava para a imagem algo que parecia ser votos matrimoniais.
                Parei de falar, passei a só observar e anotar. Seu Jair não tinha sinais de perda de memória, capacidade motora, audição nem fala. Se mexia melhor do que eu, mesmo sendo mais velho, um vigor invejável. De vez em quando minhas anotações eram interrompidas por suas gargalhadas, enquanto relatava travessuras dos netos ou cantarolava alguma música. Seu Jair me impressionava.
                Perdi a noção da hora enquanto percorria a casa, apreciando todas as mudanças, todas as cores, todos os brinquedos desenterrados do porão. Samuel, o neto, me encontrou afundado em uma poltrona com álbuns antigos de família no colo. Eu comparava o passado da casa com o presente, impressionado:
- Então, doutor, ele será internado? Ou vamos fazer alguma medicação? Qual o problema?
- Nenhum, Samuel.
- Ahn?! Mas como é possível?! O senhor prestou atenção em tudo que ele fez com essa casa? Vovó enlouqueceria...
- Samuel, os exames do seu avô não acusaram nada porque não há o que acusar.
- Eu não aceito isso! Como ninguém consegue descobrir o que aconteceu com ele?
- Respira garoto, devagar – me levantei -, puxa o ar pelo nariz, solta pela boca... De novo... Agitado assim, você que acabará internado. Sente-se aqui na poltrona. – respirei devagar – Samuel, você foi me procurar lá na clínica porque sou referência na cidade. E esse é meu diagnóstico: seu avô não está ficando maluco nem teve um derrame. É bem verdade que ele não está normal, mas, na idade dele, Delirium não atrapalha em nada. – ele me olhava, ansioso – Olhe, rapaz, entendo sua situação. Morou aqui a infância toda, se despediu da avó há alguns meses, tem medo de perder o avô. Eu escutei toda a sua história. E a de seu Jair também. Ele encontrou caixas muito antigas no porão, com o hábito da organização. Todas as memórias causaram uma reflexão involuntária e uma ruptura de personalidade.
- Então é grave? - questionou, abaixando a cabeça.
- Ah, Samuel... Quem dera tivéssemos todos essa ruptura, de preferência mais cedo! Seu avô percebeu, um tanto tarde, que a ordem em excesso rouba momentos, rouba alegria. Pelos sintomas que identifiquei, seu Jair despertou em si uma síndrome excêntrica e incomum. Basta alguns momentos de monotonia para se sentir sufocado, agitado, com uma necessidade absurda de se divertir, de quebrar a ordem. Entre as coisas que ele encontrou havia recortes de revistas da sua avó, tintas coloridas, bexigas...
- Vovó pintava quadros, era sua terapia...
- Pois é. A caixa de material dela foi a válvula de escape que seu avô encontrou no auge da crise. É o jeito dele de lidar com a perda da esposa. Não vai mata-lo. Nem põe ninguém em risco, além dos livros rasgados e das paredes. – peguei meu receituário – O tratamento é simples: mantenha seu avô abastecido de cores, peças de montar, músicas, livros. E não exija muito de um viúvo septuagenário. Não é melhor que seu avô termine a vida feliz, rindo? – o garoto coçava a cabeça – O nome da síndrome é Delirium. Não será fácil encontrar bibliografia a respeito, mas o google está aí pra isso e sei que você não descansará enquanto não encontrar. Aqui está minha recomendação, é bem simples, mas quero acompanhar seu avô de perto. Então nos veremos semanalmente, aqui ou no consultório, o que for melhor pra vocês. Estamos entendidos? - bati em seu ombro e saí.
- Samuca é um ótimo neto! – falou seu Jair, quando eu já me dirigia para a saída, deixando um atônito rapaz estatelado no corredor – Muito preocupado, muito responsável... Até demais! Culpa minha. Mas um menino incrível!
                Olhei para a parede na qual o velho pintava a letra “e” cursiva e maiúscula seguidas vezes:
- São minhas gaivotas voando ao pôr do Sol. Livres, livres...
                Por instantes, desejei que a Delirium de Gaiman também tocasse minha alma, mas ainda era muito cedo para mim. Ou muito tarde:

- Lindas, seu Jair, lindas... Me faça um favor? Não desperdice nenhuma parede! Continue pintando tudo...

3 comentários:

Carol Bernardino disse...

Ficou lindo o texto! Muito bom mesmo! Quando eu crescer, quero escrever que nem você.

Carol Bernardino disse...

Muito lindo! Adorei o texto! Quando crescer quero escrever que nem você!

A Mãe da Estela ♥ disse...

Não acompanhei do início a criação do texto, mas achei incrível!

AMO você mana.

Ps. Voltando com o blog, aos poucos e com muitos planos! rs