- É Cecília Meirelles, doutor! Tem tanto poema bonito, tanta
cor, tanta música! Por que desperdiçar o espaço das paredes com puro branco se
podemos encher de vida?
Essa foi
a primeira vez que encontrei o senhor Jair, 70 anos de idade, mulato de estatura mediana,
cabelo bem grisalho e grossas lentes sobre os olhos. Fui levado a sua casa pelo
seu neto, Samuel, muito preocupado com o comportamento incomum do avô:
- Sempre foi tão metódico com tudo, doutor! Ele era do
exército, sabe? Criou a gente com muita disciplina, muitas regras. E de repente
tá tudo ao contrário!
Apesar
dos exames limpos, o rapaz permanecia atormentado com a ideia do avô ter
sofrido algum tipo de AVC ou estar sofrendo alguma demência senil. Porém
pensava bem mais rápido que falava e estava muito difícil acompanhar seu
relato. Logo decidi:
- Tudo bem, garoto. Vamos marcar uma visita, quero conhecer
seu avô.
Eu não estava bem preparado para nosso primeiro encontro. Esperava
mais um quadro corriqueiro de Alzheimer, não aquele cenário. Não uma síndrome tão
rara.
- Como sabe que sou médico, seu Jair?
- hahahaha Ser velho tem suas vantagens! – soltou, animado,
antes de me estender a mão suja de tinta – O senhor saber meu nome, qual é o
seu?
- Ary. Prazer em conhece-lo.
- Na verdade será um desperdício de tempo, seu Ary. –
virou-se novamente para a parede – O senhor se importa se eu continuar pintando
enquanto falamos?
- Claro que não.
Eu
olhava em volta encantado. Todas as paredes da sala estavam cobertas de cores,
como se alguém tivesse estourado balões cheios de tintas. Versos de músicas, de
poemas, pedaços de histórias cobriam outros espaços. Os livros estavam
completamente fora de posição. Alguns passos adiante e podia ver o corredor
ocupado por peças de quebra-cabeças:
- Ah, o senhor desculpe! Estava brincando hoje de manhã, se
tirasse as peças daí me perderia. – falou enquanto subia uma escada – Deu bastante
trabalho juntar tudo isso assim.
- Quantos quebra-cabeças têm aqui, seu Jair? Quatro?
- Três! São de quando o Samuca era criança... – e se perdeu
na memória.
- Boas lembranças?
- As melhores! E as piores também. – encarei-o, curioso – 'Cê sabe, seu Ary, eu
segui carreira militar a vida inteira... E achava que crianças eram como recrutas,
precisavam apenas de disciplina e firmeza. – continuou, com pesar – Samuca sempre
foi uma criança ativa, montava os quebra-cabeças num estalo, logo enjoava
deles. Então, quando não tinha mais o que fazer, ele misturava as peças e
tentava transformar num desenho só.
- É isso que está fazendo?
- Sim! E como é divertido, doutor! Irritante também, quando
nada encaixa. Mas, aí, eu largo tudo e vou colorir outra parede, fazer
colagens... Viu minhas colagens?
Empolgado,
me levou à cozinha. A geladeira estava coberta de fotos de lugares do mundo
inteiro, um mosaico perfeito:
- São lugares que conheceu?
- Não. São a minha velha... – e me puxou para trás. Quanto
mais me afastava, mais nítido ficava o rosto de uma mulher. Olhei para ele,
maravilhado, mas Jair já recitava para a imagem algo que parecia ser votos matrimoniais.
Parei
de falar, passei a só observar e anotar. Seu Jair não tinha sinais de perda de
memória, capacidade motora, audição nem fala. Se mexia melhor do que eu, mesmo
sendo mais velho, um vigor invejável. De vez em quando minhas anotações eram
interrompidas por suas gargalhadas, enquanto relatava travessuras dos netos ou
cantarolava alguma música. Seu Jair me impressionava.
Perdi a
noção da hora enquanto percorria a casa, apreciando todas as mudanças, todas as
cores, todos os brinquedos desenterrados do porão. Samuel, o neto, me encontrou
afundado em uma poltrona com álbuns antigos de família no colo. Eu comparava o
passado da casa com o presente, impressionado:
- Então, doutor, ele será internado? Ou vamos fazer alguma
medicação? Qual o problema?
- Nenhum, Samuel.
- Ahn?! Mas como é possível?! O senhor prestou atenção em
tudo que ele fez com essa casa? Vovó enlouqueceria...
- Samuel, os exames do seu avô não acusaram nada porque não
há o que acusar.
- Eu não aceito isso! Como ninguém consegue descobrir o que
aconteceu com ele?
- Respira garoto, devagar – me levantei -, puxa o ar pelo
nariz, solta pela boca... De novo... Agitado assim, você que acabará internado.
Sente-se aqui na poltrona. – respirei devagar – Samuel, você foi me procurar lá
na clínica porque sou referência na cidade. E esse é meu diagnóstico: seu avô
não está ficando maluco nem teve um derrame. É bem verdade que ele não está
normal, mas, na idade dele, Delirium não atrapalha em nada. – ele me olhava,
ansioso – Olhe, rapaz, entendo sua situação. Morou aqui a infância toda, se
despediu da avó há alguns meses, tem medo de perder o avô. Eu escutei toda a
sua história. E a de seu Jair também. Ele encontrou caixas muito antigas no
porão, com o hábito da organização. Todas as memórias causaram uma reflexão
involuntária e uma ruptura de personalidade.
- Então é grave? - questionou, abaixando a cabeça.
- Ah, Samuel... Quem dera tivéssemos todos essa ruptura, de
preferência mais cedo! Seu avô percebeu, um tanto tarde, que a ordem em excesso
rouba momentos, rouba alegria. Pelos sintomas que identifiquei, seu Jair despertou em
si uma síndrome excêntrica e incomum. Basta alguns momentos de monotonia para
se sentir sufocado, agitado, com uma necessidade absurda de se divertir, de
quebrar a ordem. Entre as coisas que ele encontrou havia recortes de revistas da
sua avó, tintas coloridas, bexigas...
- Vovó pintava quadros, era sua terapia...
- Pois é. A caixa de material dela foi a válvula de escape
que seu avô encontrou no auge da crise. É o jeito dele de lidar com a perda da
esposa. Não vai mata-lo. Nem põe ninguém em risco, além dos livros rasgados e
das paredes. – peguei meu receituário – O tratamento é simples: mantenha seu
avô abastecido de cores, peças de montar, músicas, livros. E não exija muito de
um viúvo septuagenário. Não é melhor que seu avô termine a vida feliz, rindo? –
o garoto coçava a cabeça – O nome da síndrome é Delirium. Não será fácil
encontrar bibliografia a respeito, mas o google está aí pra isso e sei
que você não descansará enquanto não encontrar. Aqui está minha recomendação, é bem simples, mas quero acompanhar seu avô de perto. Então nos veremos semanalmente, aqui ou no consultório, o que for melhor pra vocês. Estamos entendidos? - bati em seu ombro e saí.
- Samuca é um ótimo neto! – falou seu Jair, quando eu já
me dirigia para a saída, deixando um atônito rapaz estatelado no corredor –
Muito preocupado, muito responsável... Até demais! Culpa minha. Mas um menino incrível!
Olhei
para a parede na qual o velho pintava a letra “e” cursiva e maiúscula seguidas
vezes:
- São minhas gaivotas voando ao pôr do Sol. Livres,
livres...
Por instantes, desejei que a Delirium de Gaiman também tocasse minha alma, mas ainda era muito cedo para mim. Ou muito tarde:
- Lindas, seu Jair, lindas... Me faça um favor? Não desperdice nenhuma parede! Continue pintando tudo...
3 comentários:
Ficou lindo o texto! Muito bom mesmo! Quando eu crescer, quero escrever que nem você.
Muito lindo! Adorei o texto! Quando crescer quero escrever que nem você!
Não acompanhei do início a criação do texto, mas achei incrível!
AMO você mana.
Ps. Voltando com o blog, aos poucos e com muitos planos! rs
Postar um comentário