quinta-feira, 18 de maio de 2017

Memórias de I: Matemática - Final


     Veja a cena: eu vestida com meu belo uniforme, pulando um muro, e caindo certinho do outro lado. Bonitinha. Tinha sido um salto perfeito. Imaginou? Agora esquece tudo isso. Eu até cheguei firme do outro lado, caí agachada, dobrando os joelhos para amenizar o impacto. Três coisas deram erradas: 
  1. O barulho do meu suposto salto; 
  2. O barulho do relógio, programado para alarmar sempre que o inspetor tivesse chegando; 
  3. E a mais importante: os barulhos não seriam nada se eu conseguisse sair dali com a mochila rapidamente. O inspetor, intrigado, iria subir no muro e não veria nada. Acontece que, quando quis levantar, senti meu lindo tornozelo me dizer... 
- Ela quebrou o pé. Vou ter que engessar. 
- Obrigada, Dr. Fábio. Sorte sua eu estar de carro para te socorrer! Sorte também a escola ser próxima a um hospital público e o inspetor ter te ouvido cair! - falou a diretora, com seu olhar seboso. Ela já havia formulado um belo relatório. Resumo das transgressões de normas do colégio que eu havia cometido. Mamãe logo estaria chegando. E quanto mais a diretora falava a palavra sorte, mais eu desejava ter sido azarada... 
     Não demorou meia hora para mamãe estar na recepção do hospital ouvindo as barbaridades que eu havia cometido. Papai estava sério, analisando as minhas radiografias e conversando com o médico na sala de emergência. Tive medo do castigo. Mas houve um acordo. Era final de semestre e eu sempre fora uma boa aluna. Então cumpriria detenção no colégio após as aulas e o resto da punição seria responsabilidade dos meus pais, em casa. 
     Já no carro, abrigada no banco de trás, fiquei ouvindo os sermões da mãe, de que ela não havia tido oportunidade de estudar e eu não sabia aproveitar a minha. Papai olhava para mim com cumplicidade, olhar risonho. Não dizia uma palavra. 
     Mais tarde, de noite, uma amiga, seu nome é Dalila, esteve em minha casa. Foi ver o estrago que eu havia feito em minha perna e me passar a matéria do dia. Entrou no quarto excitada com minha aventura. Naquela altura do campeonato, todos já sabiam: 
- Caramba!! Posso escrever no seu gesso?
- Desde que não seja em rosa...- Não entendo essa sua implicância com o rosa, I. Deixa pra lá!! Me conta mais, vai...
- ...Onde eu estava? No castigo. Bom, vou ficar presa nesta casa por um mês com a vó Docinho. Nada de sair nos fins de semana. 
- Hahaha! Sozinha com sua avó? Você vai enlouquecer. Ou vai aprender a arrumar casa, lavar e passar roupa, e cozinhar de perna pro alto! Hahahaha! Posso ver a cena!!! 
- Ri! Ri mesmo da desgraça dos outros! Agora vê! Eu tô aqui aturando a velha esclerosada e uma amiga da onça enquanto meus irmãos e meus pais estão comendo minha banana split e meu cheddar!
- Por que você quis fugir? Ia encontrar algum carinha? Algum namorado? Se você estiver namorando e não tiver me contado! I... 
- Larga de ser besta! Eu fugi daquele treco que se diz professora de matemática!
- Hahahahahaha!
- Lila, a piada não foi tão engraçada assim não. Pra que tanta gargalhada? 
- Não tô rindo da piada. Tô rindo de você! A professora de matemática pediu demissão... - ela começou a falar com cautela quando percebeu que eu estava ficando pálida - Alegou motivo de doença. Tinha um atestado dizendo que ela estava com estafa mental, e que precisava de um spa para o cérebro. Estava ficando mais maluca por causa da matemática. E com depressão, fazendo um caro tratamento psicoterápico. Foi isso que a diretora contou... - ela olhou para mim, assustada com meu olhar vidrado e a espuma que saia da minha boca - A nova professora se chama Teresa Cristina e é uma deusa! Fantástica, você teria se apaixonado por ela! Haha! Vê se pode... - falou, enquanto caminhava até a porta do quarto, procurando por minha avó - ... ela já era maluca, imagina agora que está com estafa numérica. Será que foi por álgebra ou por geometria? 
     Quando Lila terminou de falar, eu soltei um grito histérico e agudo. Ela estava estática. Deu meio passo para trás, batendo com as costas na parede. Até a surda da avó Docinho escutou meus gritos, e achou que fosse por dor na perna. Veio com tanto remédio até meu quarto que até hoje eu não sei qual me sedou. Quando acordei Dalila, ou Lila, tinha ido embora, após ter passado toda matéria a limpo para mim. Aproveitou que eu havia dormido para escrever com uma caneta pink no meu gesso, um ridículo rosa choque. 
     O papai estava sentado ao meu lado na cama. Perguntava se eu estava bem. Fiz que sim com a cabeça. O pai me explicou que, se eu quisesse, poderia procurar uma psicóloga e fazer aulas de reforço em matemática. Eu consenti. Latejando na minha mente, estava o sorriso sarcástico da discretinha, que, apesar de estar doida varrida (e espero que tenha morrido disso), havia saído vitoriosa de nosso último embate (morrido não. Tomara que esteja viva com os números psicopatas a perseguindo, de preferência por toda eternidade).
     Nessa história tem uma coisa que não consigo entender até hoje: como é que alguém consegue idolatrar Pitágoras? Ou qualquer outro doido que tenha se dedicado a matemática...


*Fim*

(Texto de 1999, protegido por Creative Commons.)


Post Script: A autora deixa claro que, apesar das dificuldades em se relacionar com a matéria, nada tem contra a matemática em si. Nem contra profissionais da área.

Nenhum comentário: